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Karim Aïnouz: Um cineasta que quer contar todas as histórias possíveis

O roteirista e diretor cearense Karim Aïnouz celebra um feito. Na última quinta-feira, ele se tornou o primeiro brasileiro a concorrer a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, por dois anos consecutivos. Seu novo filme, "Motel Destino", totalmente rodado em Beberibe e com equipe e elenco majoritariamente cearenses, está na competição oficial deste ano

Émerson Maranhão

emerson@ootimista.com.br

Karim Aïnouz no set de Motel Destino, em Beberibe (FOTOS: MARIA LOBO/DIVULGAÇÃO)

 

Não faltam motivos para Karim Aïnouz sorrir. E ele não tem economizado sorrisos nos últimos dias. Seu mais novo filme, Motel Destino, está na competição oficial do Festival de Cannes deste ano, ao lado dos novos trabalhos de nomes como Francis Ford Coppola, David Cronenberg, Paul Schrader e Yorgos Lanthimos. Cannes é um dos mais prestigiosos – senão o mais – festivais cinematográficos do mundo.

O festival e Karim são velhos conhecidos. Foi lá que Karim estreou seu primeiro filme, Madame Satã, na mostra Um Certain Regard em 2002. Mesma mostra em que conquistou o prêmio principal com A Vida Invisível, há cinco anos. Em 2023, Karim estreou na competição oficial com o filme britânico Firebrand, estrelado por Alicia Vikander e Jude Law. E agora, mais uma vez, o cineasta cearense cruzará o tapete vermelho na Croisette, para apresentar o novo longa, uma ficção rodada em Beberibe. Em entrevista ao O Otimista, realizada por videoconferência de Berlim, onde mora, Karim fala sobre o filme e sobre a emoção de emplacar duas seleções seguidas na principal mostra do Festival.

 O OTIMISTA – Como você recebeu a notícia da segunda seleção seguida para a Competição Oficial do Festival de Cannes?

Karim Aïnouz – Olha, a gente nunca acredita direito. A gente recebe a notícia (da seleção) antes, né? Eles ligam antes pra gente e tal. E aí eu passei uns dias assim: “meu Deus do céu, não posso contar pra ninguém”… Que desespero, mas que bom, que alegria e tal. E hoje (na última quinta-feira, dia 11), a gente sentou aqui para ver a conferência de imprensa, que é um dos momentos mais importantes do cinema mundial durante o ano. E a gente sabia, mas a gente não sabia quando, exatamente, como. A gente nunca sabe exatamente. Mas, cara, foi um sonho virando realidade!. Porque foi engraçado, quando o Thierry (Frémaux, diretor do Festival de Cannes) escreveu para avisar da seleção, que estava muito contente e tal, dois dias depois eu escrevi para ele e falei assim: “Mas isso é verdade? Esse email chegou mesmo?”. E aí, enquanto isso não é público, na verdade, eu fiquei ainda com essa coisa… Então, não dormi direito ontem, esperando um pouco… As horas não passam, enquanto isso não é público, parece que as horas não passam, isso parece que não é verdade. Então, foi muito emocionante! É muito emocionante também entender do lado de quem a gente está, quem está no line-up deste ano. E sei lá, eu acho que mais do que tudo, eu acho que foi muito bom esse ano, essa seleção, mais que qualquer outra que eu já tive em Cannes, porque é uma espécie de seleção que está de fato celebrando o filme, está celebrando o Ceará, o projeto do Porto (Iracema das Artes), mas está celebrando uma espécie de retomada do Brasil.

O OTIMISTA – Como é que você chegou no roteiro do Motel Destino?

Karim – Olha, eu sou muito… Teve uma época da minha vida que eu decidi que queria muito fazer filmes durante os quais eu ficasse acordado. Eu falei: “Como é que consigo ficar acordado?”. Porque você vai ver cinema, às vezes está cansado e tal, e eu sou uma pessoa muito interativa… Então eu falei: “Gente, eu adoro suspense!”. Eu sou muito encantado em uma literatura de suspense mesmo, assim, de crime mesmo, né?, no cinema, especificamente no cinema noir na década de 40 ali, não só pela questão do suspense, mas porque eu acho que o cinema noir consegue de fato retratar personagens muito fraturados, são personagens do pós-guerra e tal. É uma tradição que sempre me interessou e uma outra tradição que sempre me interessou no cinema foi a pornochanchada.
Eu sempre achei que a pornochanchada era um gênero que a gente tinha um pouco deixado do lado, que tinha um pouco de vergonha. E para mim eu sempre fui muito encantado de como a pornochanchada conseguia falar de temas, durante a ditadura, que eram temas muito, muito espinhosos, através daquelas tramas. E eram filmes que celebravam o corpo, que celebravam a vida, que tinham um senso de humor. Então, foi um pouco juntar isso para fazer uma série de filmes que fossem dentro desse diapasão, que fossem filmes com apelo popular, mas que fossem filmes que tivessem um jeito muito específico de ser, filmes que tivessem muita cor. Então, ele é parte de um projeto maior, de fato. É parte desse projeto da produtora (Cinema Inflamável), assim, onde ele é o primeiro. Então ele, para mim, é um filme que é parte de uma trilogia. Então eu sempre pensei nele como uma espécie de… Você tem o que se chama hoje em dia do noir escandinavo, ou noir francês. A Nouvelle Vague era isso, era uma reapropriação do gênero na década de 60 e eu achei que eu queria fazer isso sobre o Equador. Como é que a gente filma o noir onde não é noir, onde o principal tema é a cor, como é que a sombra é a cor. Então, são várias coisas que eu estava animado de fazer, mas antes de qualquer coisa era uma vontade de fazer filmes com apelo popular, que fossem filmes que tivessem suspense e que fossem filmes tesudos de ver. Então, o Motel nasce desse lugar.

 

O OTIMISTA – Do que trata o filme?

Karim – Com relação ao tema do filme, para mim é um filme que fala
de solidariedade. Fala de solidariedade entre personagens que estão ali, que são periféricos, ou que estão em uma situação de desamparo. E quando eles se juntam, eles são mais fortes do que quando estão sozinhos. Então, para mim, isso é muito importante, que é um tema que está presente no meu trabalho como um todo, que está muito presente no A Vida Invisível, né? Tem uma questão de solidariedade, que é muito importante, e aqui é um pouco uma outra maneira de se olhar para esse tema através de uma outra trama, entende?

 

O OTIMISTA – Entendo. Mas o filme também marca o seu retorno ao Ceará, para fazer um filme todo rodado no estado. Como é que foi?

Karim – Cara, foi assim, eu fiz há dois anos um filme que eu adoro (Firebrand, que também concorreu na competição oficial de Cannes, em 2023). Foi uma experiência extraordinária, foi filmado na Inglaterra, sobre os Tudor, a dinastia Tudor, no século XVI. E eu me lembro de a gente estar filmando na Inglaterra… E esse projeto (Motel Destino) é um projeto, como eu te falei, que existe desde 2017. A gente ganhou o Edital da Ancine, o Fundo Setorial (Audiovisual), e a gente nunca recebeu, né, esse financiamento, porque entrou um governo novo, aí foi terra arrasada. Então eu tinha um pouco desistido dele. Eu achei que a gente nunca ia conseguir fazer. E eu estava filmando o Firebrand, no meio da Inglaterra, era primavera, mas era uma sensação de ser tudo sempre nublado. E tinha uma coisa bonita para o filme… Também é um thriller, né, esse filme que eu fiz lá, mas eu fiquei com vontade de filmar no sol, de filmar de short. Fiquei com vontade de filmar num lugar em que eu pudesse tomar banho de mar depois de filmar. Uma coisa quase de vida, sabe? De sensação de estar muito tempo ali no nublado, e eu queria aquele sol assim, como algo que fosse parte não só do filme, mas da trama e do processo e tal. E aí eu falei, será que ainda daria certo? E aí a gente conseguiu, de fato, liberar o financiamento que tinha sido contratado lá atrás e aí eu corri, acabei o Firebrand, fui para Cannes no ano passado, exatamente um ano atrás. Na verdade, antes de Cannes, eu fui ao Brasil fazer elenco, acabei de sair de Cannes, passei em casa e pum!, fui para filmar aí. Então, uma vontade muito grande, talvez por conta de ter estado tanto tempo fora de casa. Eu passei cinco anos sem ir ao Brasil durante o governo passado, eu realmente não fui aí, teve a pandemia e tal, então ele veio com uma fome grande de casa, sabe? Então foi um pouco isso que pautou o desejo de fazer esse filme.

 

O OTIMISTA – Você citou o elenco, uma parte considerável dele é cearense…

Karim – (interrompendo) Não é uma parte considerável. O elenco inteiro é cearense.

 

O OTIMISTA – Com exceção do Fábio (Assunção).

Karim – Só o Fábio que não é, mas o elenco inteiro é cearense. Eu fiz questão! Eu me lembro que no Céu de Suely era um elenco um pouco pan-nordestino, né? Tinha gente de Pernambuco, tinha gente da Bahia… Eu falei, agora eu vou fazer um filme só com atores cearenses e atrizes cearenses. E o filme, ele vem desse lugar, assim, de uma pesquisa grande. Eu acho que a gente tem talentos inacreditáveis, que não têm oportunidade. Não têm oportunidade porque não são feitos filmes suficientes para essas pessoas poderem trabalhar. No audiovisual, na verdade, ainda não tem uma produção que é suficiente para isso. E para mim era muito importante trazer essas pessoas para um projeto concreto, de cinema. E a equipe inteira, não inteira, mas grande parte da equipe, acho que 80% dela é cearense. Não só cearense, mas grande parte da equipe são pessoas que passaram pelo Porto Iracema das Artes e pelo Laboratório (de Roteiros). E pessoas que são pessoas chave no filme, como o Wislan Esmeraldo, que é o roteirista, um dos roteiristas do filme, como a Luciana Vieira, como o Tarciso, como uma série de pessoas que fizeram parte do Porto e que, de fato, estavam ali e vieram trabalhar com a gente no filme. Então, para mim, também é parte de um processo de formação, entendeu? Eu acho que é legal a gente estudar… Enfim, você já passou pelo Porto, sabe como é. E é muito importante que a gente coloque a mão na massa. Então esse filme é isso, vamos lá passar o ato. Vamos fazer um filme juntos, entendeu? E aí eu acho que era muito importante para mim eu poder também dividir a minha experiência como diretor, a minha experiência como produtor, a minha experiência como cineasta com esses colaboradores.

 

O OTIMISTA – Você está emendando duas seleções seguidas em Cannes, na competição oficial, com filmes de origens completamente distintas…

Karim – (interrompendo) Não é isso, criatura? Eu ainda não acreditei! (risos). Pois é, sabe o que isso faz? Isso me faz sentir um pouco que eu sou um cineasta que estou entre culturas. Isso é um super privilégio. É engraçado pensar nisso, estava falando com um amigo ontem à noite. Não é só que eu estou com dois filmes emendados, é que o filme anterior ao Firebrand é um filme que eu fui filmar na Argélia (Marinheiro das Montanhas, exibido em sessão especial do Festival em 2021). Ele foi inteiro filmado a Argélia, entendeu? Então isso me dá, na verdade, uma sensação de que a gente pode contar todas as histórias possíveis, entendeu? Eu acho que o importante é a conexão que a gente tem com os personagens e eu acho que me permite olhar para trás e entender como que eu sou, como que eu me sinto livre, sabe? Tipo, eu posso de fato fazer um filme que se passa no século XVI, um filme na Inglaterra, um filme na África, um filme no Ceará. Então, acho que isso me dá uma sensação de liberdade muito grande, de que de fato a gente conta histórias. Essas histórias às vezes são histórias que estão onde a gente veio, histórias que não têm nada a ver com a gente, mas que a gente se apega a elas por conta do que foram os personagens. E em última instância é isso, né?, a gente faz filme sobre personagens. São os personagens que são os nossos grandes pilares, para qualquer projeto. Então, o que me permite pensar que, de fato, é uma paixão que você tem pelos personagens, pouco importa onde é que eles vêm

O OTIMISTA – Como foi trabalhar com o Fábio Assunção?

Karim – Foi incrível, ele é um grande ator! Um ator que não tinha feito muito cinema. A experiência do Fábio é mais no teatro. Então, foi muito bonito, porque ele veio com uma fome, com uma vontade, com um desejo de adentrar esse território novo. Um ator disciplinadíssimo, entendeu? Era uma loucura a maneira como o Fábio estudava o texto, o roteiro, as inflexões dramáticas, todas elas. A gente ensaiou muito o filme. Então foi realmente um prazer. E um colaborador, entendeu? Alguém que estava ali a favor, que estava de fato contracenando com um ator como o Iago Xavier, que nunca tinha feito um filme na vida antes, que era a primeira vez que entrava num set de imagens. Então, ele também é um ator muito generoso nesse sentido, entende? Que se surpreende, que se entrega. Então foi um presente para mim. Acabou de me ligar, eu não consegui falar com ele na hora do anúncio, que era muito cedo aí, e ele também está superfeliz. Eu acho que eu fico feliz de poder trazer para o cinema um ator que estava morando ali na TV, que estava morando no teatro, para fazer uma coisa nova.

 

O OTIMISTA – O Maurício Macedo (produtor executivo de Motel Destino) comemorou o anúncio da seleção postando numa rede social: “Beberibe para o mundo”. Como é que está a sua expectativa de levar Beberibe pra Croisette?

Karim – Cara, é um pouco… Eu fico pensando… de novo, ainda me pergunto: “É verdade”? É muito incrível o que o cinema faz, né? E Beberibe e a Praia das Fontes têm uma coisa engraçada, né?, porque é uma praia que era muito na moda na década de 90, e que de repente ficou menos na moda e tal. E a gente passou cinco meses lá. Então, eu acho que é mais uma vez jogar a luz num lugar que não estava sendo celebrado adequadamente. Eu fico sempre brincando que esse filme não é um filme tropical, esse filme é um filme equatorial. E acho que é muito importante a gente falar desse terroir, que é o Equador, que é esse lugar, que é o Ceará, que é o Piauí, que é Rio Grande do Norte, um pouquinho do Maranhão, que é um lugar muito específico, com geografia específica, com um mar, que é uma coisa específica, com o calor. Eu estava fazendo marcação de luz, estou fazendo marcação de luz aqui, né? E os europeus olham que a luz, elas colocam amarelo, mas não é amarelo, a luz é branca, é uma luz branca, é uma luz que é muito intensa. Então, foi muito bonito poder filmar esse lugar com todo o potencial que esse lugar tem de virar um personagem também.

 

O OTIMISTA – É engraçado você falar isso porque quando a gente conversou no lançamento de A Vida Invisível você o definia como um “melodrama tropical”…

Karim – É, agora é noir equatorial (risos). A Nouvelle Vague é em homenagem ao cinema noir. Na verdade, é uma releitura do cinema noir. Então, eu acho que aqui o que eu tentei fazer foi utilizar o gênero e digeri-lo de um jeito que ele seja nosso mesmo, de processá-lo de um jeito que a gente possa dizer que ele também é nosso, que ele não é uma propriedade do cinema americano, entendeu?

 

O OTIMISTA – Na semana passada você estava fazendo o lançamento do Firebrand na França.  Você agora vai conciliar o lançamento internacional do Firebrand com a ida para Cannes?

Karim – Quer saber mais? Eu estava fazendo o lançamento do Firebrand com o Jude (Law, ator do filme) lá na França, e aí eu voltei (para Alemanha) para terminar o Motel Destino, a seleção saiu hoje, quando for segunda-feira (hoje), eu estou voltando para a França para fazer o lançamento do Marinheiro das Montanhas. Então é uma alegria sem fim. O Marinheiro é um filme de 2021, a gente está em 2024, então é tão bonito poder lançar esses filmes e estar perto do público, sabe? De poder trocar com o público. Então é um ano de estreias, estou muito feliz.

 

 

 

 

 

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