Páginas Vermelhas

José Eduardo Belmonte: A arte de olhar para fora para ver o que está dentro

Prestes a completar 30 anos de premiada carreira, o cineasta José Eduardo Belmonte ainda sente frio na barriga ao pisar num set ou ao comparecer a uma premiere. Nas vésperas de estrear "Uma Família Feliz", seu mais novo filme, ele conversou com O Otimista sobre processo criativo, temas recorrentes em sua obra e, claro, sobre o suspense que chega às telas nesta semana

Émerson Maranhão

emerson@ootimista.com.br

Eva (Grazi Massafera) e Vicente (Reynaldo Gianecchini) formam o que se convencionou chamar de “uma família perfeita”, digna de comercial de margarina. São pais de duas gêmeas de 10 anos de idade, têm uma animada vida sexual, moram num condomínio de luxo, e o terceiro filho, o recém-nascido Lucas, acaba de chegar. Só que, na verdade, nada é o que parece. E mergulhar no lado sombrio dessa família é estar disposto a questionar certezas – pessoais ou não – e a ser surpreendido. Este é o convite que o cineasta José Eduardo Belmonte faz aos espectadores do suspense Uma Família Feliz, que estreia em circuito comercial na próxima quinta-feira, dia 4. O mais recente trabalho do diretor de títulos como Alemão (2014), Carcereiros (2019) e O Pastor e o Guerrilheiro (2023), tem roteiro assinado por Raphael Montes (Bom dia, Verônica) e traz intenções para além de surpreender plateias. É o que o diretor revela, nesta entrevista exclusiva ao O Otimista, realizada por videochamada, diretamente do Rio de Janeiro.

 

O cineasta José Eduardo Belmonte (FOTOS: FERNANDO PINHEIRO/DIVULGAÇÃO)

 

O Otimista – Como surgiu a ideia de filmar Uma Família Feliz?

José Eduardo Belmonte – Eu conheci o Raphael (Montes, roteirista do filme) por causa de um outro projeto que não aconteceu. Aí, em 2015, eu entrei numa série, que era na Globo até, que a gente brincava, que era tipo uma “seleção brasileira” de roteirista na época, porque tinha Juliana Rojas, tinha o Braulio Mantovani, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, e Raphael também estava nessa Sala (de Roteiros). E no almoço, eu falei com o Raphael: “Pena que aquele trabalho não aconteceu, né, Rapha? Ele falou: “É, pois é, não aconteceu, mas eu tenho uma outra história”. E ele me contou a história, do começo ao fim. E eu fiquei muito impressionado com a história. A primeira coisa que me pegou, eu acho que isso não é o tema do filme, mas a primeira coisa que me pegou foi uma pessoa sendo julgada sumariamente. Eu acho que em 2015 era muito pertinente com o que estava acontecendo. Ficou mais pertinente com a época, mas em 2015 já era pertinente. E assim que ele me contou, imaginei a Grazi (Massafera). E aí, três meses depois, a produtora do René Sampaio, que é um cara que fazia faculdade comigo em Brasília, fez (os filmes) Eduardo e Mônica, Faroeste Caboclo, a produtora dele me ligou procurando projeto. E eu pedi pro Rapha escrever o que ele tinha me contado numa sinopse. Apresentei, e o projeto começou. Demorou quase dez anos para ele estar estreando agora.

 

O Otimista – Se a gente olha em perspectiva, a temática de Uma Família Feliz estabelece pontes de conexão com a sua filmografia, não é?

Belmonte – Com parte dela. Sim, sim, acho que sim. Acho que tem uma questão dos temas que sempre me interessam, que são pessoas que tentam sair do isolamento, né? Ainda que seja de uma forma confusa, não objetiva, mas me interessa esse tema. Acho que isso também é um pouco de algumas outras reflexões.

 

O Otimista – Você falou que quando decidiu filmar, quer dizer, quando ouviu a história já pensou de imediato na Grazi. E como é que foi a escolha do Gianecchini? Como foi a seleção do elenco?

Belmonte – Eu acho que tinha uma coisa… Foi maravilhoso, na verdade a Grazi. Porque a Grazi foi uma grande parceira mesmo no projeto. Acho que ela tinha uma experiência muito… Ela é mãe, tem uma experiência muito além, inalcançável pra gente, assim, sobre alguns temas do filme. E o Gianecchini, eu quase filmei com o Gianecchini o Se nada mais der certo (filme de 2018, protagonizado por Cauã Reymond). Quase foi com o Gianecchini. O Gianecchini era a primeira opção. Mas não pôde fazer, acabou vindo o Cauã pro projeto. E aí eu fui procurando, porque tinha a questão do tipo físico, né, tem essa imagem um pouco normativa do que seria uma família feliz, né? Essa imagem colocada no imaginário lá atrás, né?, do que seria uma família feliz. E o Gianne tem esse tipo físico. Ele é todo num certo padrão.

 

O Otimista – Assim como a Grazi também.

Belmonte – Assim como a Grazi também. E aí, aconteceu de eu ter visto a série do Raphael (Montes, um dos autores de Bom dia, Verônica, da Netflix), que ele tinha trabalhado com o Rafael. Eu gostei muito dele e eu falei, vamos chamar o Gianecchini. E aí ele entrou no projeto, foi muito interessante a parceria dos dois. Os dois tiveram uma boa química também.

 

“Esse é um tema muito brasileiro, essa dificuldade de lidar com a verdade, de querer construir uma imagem, querer impor essa imagem. Acho que a cultura autoritária, que está realmente também muito arraigada no Brasil, eu acho que se reflete um pouco nisso também, na dificuldade de lidar com a verdade, de querer impor uma situação”

 

O Otimista – Eu tinha creditado parte da escolha do elenco, tanto a Grazi quanto o Gianecchini, à essa questão das aparências. Você fala a partir de uma normatividade imposta, que realmente existe esse padrão dos dois, e o que pode estar por trás dessa aparência. De alguma maneira, é um pouco o que a série trata também, não é?

Belmonte – É, também. O que pode estar por trás das aparências, né? Esse é um tema muito brasileiro, essa dificuldade de lidar com a verdade, de querer construir uma imagem, querer impor essa imagem para as pessoas. Acho que a cultura autoritária, que está realmente também muito arraigada no Brasil, eu acho que se reflete um pouco nisso também, na dificuldade de lidar com a verdade, de querer impor uma situação. Enfim, eu acho que tem muito a ver. Um grande tema do filme. Eu acho que esse é o grande tema do filme.

 

O Otimista – Você trata de temas muito contundentes e faz um cinema com sucesso comercial. Você não é um cineasta que possa se dizer isolado das grandes plateias. Como é que você consegue esse equilíbrio?

Belmonte – Olha, é erro e tentativa (risos). Tem os acertos, mas acho que o erro faz parte do processo também. É uma experimentação minha, tentar dialogar com um grande público, né? Tentar colocar uma… fazer uma dialética. Eu acho que o processo de cinema é sempre dialético. Isso me estimula muito e me estimula a tentar também criar pontes, né? Pontos de interseção e pontes. Eu acho que eu tive sucesso em alguns projetos, Carcereiros, a série, por exemplo, é um projeto de bastante sucesso, né? Em alguns outros projetos também. Mas também tem os erros. Eu acho que isso faz parte. Isso é o bacana, que a gente está aprendendo com os erros também. Se não aprender com os erros, não funciona. Mas eu acho que essa é a ideia também, é tentar sempre trabalhar um pouco a escuta, trabalhar num processo colaborativo, com todas as partes do projeto, inclusive nessas questões de produção, e fazer a dialética. Eu acho que isso que é o bacana do cinema, é quando você sai de si e vai tentando fazer conexões e achar pontos comuns.

 

“Toda cinematografia madura tem que trabalhar com a diversidade. A diversidade de vários olhares fazendo cinema e também vários tipos de cinema. Eu acho que isso que eu também comecei a buscar. Assim, eu achei que eu fazia muito cinema comercial, mas comecei a me achar muito isolado. E eu acho que era importante ocupar esse espaço também”.

 

O Otimista – Você acha importante, interessante, estabelecer esses canais de comunicação com grandes plateias? Porque para alguns cineastas isso chega a ser problema e para outros não. Tem uns que almejam as enormes plateias, mas também tem gente que faz um cinema mais hermético…

Belmonte – Sim. Eu acho que o bacana… Toda cinematografia madura tem que trabalhar com a diversidade. A diversidade de vários olhares fazendo cinema e também vários tipos de cinema. Eu acho que isso que eu também comecei a buscar. Assim, eu achei que eu fazia muito cinema comercial, mas comecei a me achar muito isolado. E eu acho que era importante ocupar esse espaço também. Mas eu acho que é interessante que outras pessoas também procurem, porque é um aprendizado muito rico. Você falar com grandes plateias, você mexer com vários tipos de orçamentos também. Mas eu acho que pode tudo. Acho que o cinema é bacana porque pode tudo. E eu acho que é bacana ter o respeito por decisões de cada um também, eu acho que é também ter o respeito de quem produz, de quem investe, de quem patrocina e saber que é importante essa diversidade. Então eu acho bacana. Eu sou um curioso e gosto de experimentar. Eu já fiz filmes muito fechados, que deu 800 espectadores (risos), já tive filmes assim. E já fiz filmes de um milhão, já trabalhei em TV aberta, com uma conta estratosférica tipo 37 milhões (de reais), 40 milhões. Eu sou curioso, eu gosto de transitar e fazer várias experiências.

 

O Otimista – O Auto da Boa Mentira é uma dessas experiências, certamente. É um filme que eu não esperava que você fizesse.

Belmonte – Eu também não (risos). Eu também não. Eu achei muito inusitado. Eu achei interessante o desafio de colocar Ariano (Suassuna) dentro de um cenário mais urbano. Mas foi inusitado. Eu não esperava também, não. Eu confesso que eu achei a experiência boa. Eu acho que quando a gente foi fazer uma versão pra TV, a gente conseguiu acertar mais o tom dele. O Histórias Quase Verdadeiras, que é a variação, né? A imagem para a TV. É, eu achei mais redondo. Mas foi inusitado mesmo, sim.

 

O Otimista – O que é que mais lhe move a fazer cinema, Belmonte?

Belmonte – Eu acho que cinema é uma forma de e expandir mundos, expandir universos. Expandir o seu próprio mundo também. Eu entrei em várias realidades, conheci várias pessoas através de cinema e através da experiência de vida de fazer um filme. Então, para mim, é uma forma de expressão, sem dúvida também, mas é uma forma de sair do isolamento e de tentar fazer transformações também. Eu acho que minha grande paixão pelo cinema surge um pouco dai. Eu morava em Brasília, nos anos 1970, não sei se você conhece, mas era um lugar realmente muito pouco gregário. Nos anos 70, com certeza, as áreas muito vazias, com arquitetura muito pouco convidativa ao encontro humano. Convidava muito para a introspecção, a cidade. E eu fui descobrindo no cinema outros mundos, outras pessoas. E fui me descobrindo através disso. Então, eu acho que o cinema é uma ferramenta poderosa para isso.

 

O Otimista – O cinema é uma maneira de olhar para fora para se ver?

Belmonte – É, acho que você resumiu super bem o que eu estava tentando dizer. Foi super sintético, exatamente isso (risos)

“Jabor (cineasta) falava que ser cineasta é viver em eterna ansiedade. Ansiedade para começar a filmar, ansiedade filmando, ansiedade para exibir… Eu sinto sempre. Mas, é claro que a experiência dá um certo entendimento para a ansiedade de não te dominar e você conseguir aproveitar essa experiência”.

 

O Otimista – Durante a feitura de um filme, da escolha do roteiro à estreia, qual é o momento em que o frio na barriga chega? Ou quais são os momentos?

Belmonte – Olha, eu… O falecido (Arnaldo) Jabor (cineasta) falava que ser cineasta é viver em eterna ansiedade. Ansiedade para começar a filmar, ansiedade filmando, ansiedade para exibir… Eu sinto sempre. Mas, é claro que a experiência dá um certo entendimento para a ansiedade de não te dominar e você conseguir aproveitar essa experiência. Existe ansiedade, existe aflição, mas também você ter um certo controle emocional sobre isso e ter um entendimento sobre o que está acontecendo em cada situação. Em uma exibição, a resposta do público, o processo de filmagem. Então, você não deixar que isso, essa ansiedade, te tolha e nem te aprisione. Mas eu não consigo detectar um momento (risos). Todos para mim aflitivos… Não aflitivos, mas causam um pouco de ansiedade, não vou negar, todos causam um pouco (risos). Mas depois, quando você vai entrando no processo, eles provocam muito prazer. É um processo muito prazeroso.

 

O Otimista – Tem uma cena icônica na cinebiografia do Hitchcock, dirigida pelo Sacha Gervasi, em que o Anthony Hopkins faz o protagonista. É na estreia de Psicose, em que ele sai da sala e fica no hall do cinema, sem ver o que acontece, só esperando a reação da plateia para as cenas do banho da personagem da Janet Leigh. Geralmente, quando um cineasta dirige um filme, ele sabe as propostas que coloca em sua narrativa. Em que hora a plateia deve rir, em que hora a plateia deve chorar, em que hora a plateia deve pular da cadeira e gritar. Você trabalha com essa gramática também?

Belmonte – Não. Não tenho essa ambição (risos). Eu acho que você não deve ter, porque você não controla a plateia. Eu aprendi isso.. É muito rico quando as leituras do filme são as mais absurdas, mas também as mais interessantes também… É claro que você tem uma meta, você tem uma mensagem que você quer passar, um universo que você quer criar, mas o processo é dialético. O filme nasce depois de pronto, com a exibição. E é muito interessante, porque eu nunca achei que o cinema fosse uma experiência parecida com um teatro, mas é. Depende muito da plateia e da época em que você exibe. Eu já tive vários filmes reexibidos em outras épocas, com outras plateias, públicos mais jovens vendo pela primeira vez o filme. É muito curioso, é muito rico também. Essa possibilidade, essa gama de respostas que você pode ter ao filme, também estimulante, mas também causa ansiedade, não vou negar (risos).

O Otimista – Belmonte, em uma conversa recente, a Laís Bodansky (cineasta), disse que um dos grandes desafios para quem faz cinema hoje é pensar num projeto que consiga estabelecer diálogo, que seja exibível daqui a cinco, seis anos. Porque a gente está vivendo um mundo com acelerações tão loucas, com mudanças tão abruptas, que você não sabe se daqui a cinco anos o tema é relevante ou se o tema ainda vai ter a mesma compreensão. A gente falou mais cedo que é um projeto que começou em 2015. Como é que você vê esse processo dessa mudança da relevância do tempo?

Belmonte – Eu acho que é muito interessante quando a gente trabalha com projetos que continuam a reverberar dentro da gente. Acho que é isso que faz o projeto acontecer. No caso dessa história, ela continuava reverberando sempre. Então, foi bacana. Mas a gente não controla muito esse caminho não, sabe? E isso nós podemos até você ver em filmes que são revistos agora, há uma geração toda nova recuperando alguns filmes. Isso sempre acontece na história da arte. Às vezes com cinco anos ele pode ficar velho, mas daqui a 15 anos ele não fica velho mais, ele é redescoberto… Então eu procuro ter essa paciência em relação ao tempo com os projetos. Mas eu procuro realmente procurar histórias que me sensibilizem, que procurem sensibilizar os outros e eu acho que eu tenho um feeling nesse sentido, é um tema que pode e deve ir a mais à frente, mas isso eu não controlo.

 

O Otimista – Você falou agora de novas gerações. Eu queria saber o que você acha da produção cinematográfica brasileira contemporânea?

Belmonte – Eu estou muito feliz. Assim, quando eu comecei mesmo, a produção era dois longas por ano (risos). Depois, quando ficou melhorzinho, na retomada, era 36, 50. Então, eu acho bacana o que está acontecendo hoje. E também, só Rio e São Paulo, basicamente, filmavam. Então eu acho bacana que hoje a gente esteja vendo produções de outros lugares, de todos os olhares do País. Ainda é pouco, mas a gente está expandindo isso, expandindo outros olhares também, de outras camadas de população também. Então eu acho isso muito bacana. Eu acho que a gente está no caminho de maturidade ainda e é bom estar acontecendo isso. Enfim, eu vejo tudo com bons olhos. E tem pessoas que eu acompanho, novos realizadores, que eu acompanho nos curtas e vendo eles chegando nos longas também. Então, eu acho isso muito bacana. Eu vejo animado esse momento. Eu acho que tem coisas a serem conquistadas ainda, de políticas também, e outras coisas mais complexas, como preservação de filmes. Mas eu acho que a gente está avançando.

 

Assista ao trailer do filme Uma Família Feliz:

Deixe uma resposta

Compartilhe

VEJA OUTRAS NOTÍCIAS