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CARLA MICHELE – “A cidadania exige ativismo”

A cientista política analisa nesta entrevista ao O Otimista as mudanças no cenário político de Fortaleza para o pleito deste ano e destaca o potencial competitivo dos cinco principais postulantes ao Paço Municipal, bem como as estratégias que podem vir a ser adotadas por cada um durante a campanha eleitoral. A professora destaca que o voto é uma conquista do povo brasileiro e que é imprescindível que as pessoas escolham seus representantes com consciência daquilo que estão fazendo.

Gleiciane Soares
gleiciane@ootimista.com.br

A cientista política, Carla Michele Quaresma (Foto: Edimar Soares)

A professora universitária, Carla Michele Quaresma, recebeu o jornal O Otimista na sede da Faculdade CDL – Centro de Fortaleza, onde leciona. Ela falou sobre a nova composição das bancadas partidárias na Câmara Municipal da Capital após o fechamento da janela partidária, a evolução dos partidos políticos no Estado, o cadastramento eleitoral e o cumprimento da cota de gênero na formação das chapas proporcionais.

Carla possui graduação em Ciência Política e Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), curso superior em Marketing e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), além de ser pesquisadora em temas relacionados ao funcionamento das agremiações partidárias, ética e financiamento de campanhas eleitorais e marketing político.

O Otimista – O que podemos esperar da campanha eleitoral e das possíveis estratégias dos pré-candidatos a prefeito de Fortaleza?

Carla Michele – Será uma campanha diferente. Primeiro, porque em alguns pleitos nós tivemos a fusão de dois partidos políticos que construíram um projeto no estado do Ceará e disputavam as eleições conjuntamente. O PT e o PDT tinham interesses comuns e disputavam as eleições compartilhando decisão acerca de quem seriam os candidatos. É a primeira eleição municipal que teremos com essas candidaturas separadas. A candidatura de Evandro Leitão é dada como certa pelo Partido dos Trabalhadores. Nós teremos aí uma candidatura do PDT, a reeleição do prefeito José Sarto. Além disso, nós sempre tivemos essa disputa com uma direita que não era vinculada a determinadas pautas muito próximas hoje do bolsonarismo. Teremos também uma dispersão disso que nós consideramos no aspecto político à direita. Muito provavelmente o que tem sido apresentado até o momento é uma candidatura mais alinhada com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que o deputado André Fernandes já manifestou esse interesse na disputa. Mas nós teremos também a possibilidade de outros candidatos dentro dessa linha mais à direita, como o senador Girão, e o Capitão Wagner, que é uma figura que tem participado do processo eleitoral aqui em Fortaleza. No pleito passado, para governador do Estado, ele obteve a maior votação aqui na cidade de Fortaleza, então, já tem uma qualificação. As pessoas quando são consultadas sobre em quem votariam, imediatamente elas já pensam no nome do Capitão Wagner. Já existe um capital [político] que foi construído e que muito provavelmente o consolida também para que ele entre nessa disputa. Vamos ter um cenário interessante, dessa perspectiva de uma multiplicidade maior de candidaturas com potencial competitivo.

O Otimista – Com relação às possíveis estratégias?

Carla Michele – Em relação às estratégias, acredito que o prefeito José Sarto vai tentar mostrar quais foram os grandes ganhos, as conquistas obtidas na gestão. É muito provável que ele tente reacender na lembrança do eleitor fortalezense as conquistas que melhoraram a vida das pessoas de uma forma geral. A descentralização de políticas, o município de Fortaleza se ressente muito de uma desigualdade profunda entre as áreas mais nobres da cidade e as áreas mais periféricas. Ele deve enfatizar essa questão da descentralização de políticas, o quanto a Prefeitura avançou no sentido de levar mais qualidade de vida para essas populações mais à margem do Centro de Fortaleza, das áreas mais turísticas. Algo que vai ser utilizado como um trunfo; é a questão do Passe Livre para estudantes, porque a comunicação da Prefeitura está muito alinhada com esse público mais jovem, o público TikTok. O Evandro Leitão ainda é uma figura, embora seja presidente da Assembleia Legislativa, ele está construindo um caminho que é parecido com o caminho que foi percorrido pelo Sarto, foi percorrido pelo Roberto Cláudio, contando com o apoio político dos mesmos padrinhos. Apesar de ser presidente da Assembleia, ele também não é uma figura conhecida, popular na cidade de Fortaleza.

O Otimista: O pleito deste ano pode consolidar uma nova representação da oposição no Ceará?

Carla Michele – É provável que tenhamos uma consolidação desse grupo caracterizado como de direita, pelos valores que são defendidos. É muito difícil no Brasil a gente trabalhar com essa distinção entre esquerda e direita. O sentido clássico da distinção foi trabalhado por um autor italiano chamado Noberto Bobbio. Ele estabeleceu a distinção de acordo com dois conceitos: liberdade e igualdade. As pessoas que se situam mais no aspecto de direita, elas acreditam que a liberdade é um bem superior. É por isso que elas falam tanto em liberdade. Já a esquerda fala muito em igualdade. -“Vamos construir uma sociedade mais igualitária, mesmo que isso comprometa a nossa liberdade. Sejamos mais iguais e menos livres”. Porque para ser mais igual tem que ter um Estado mais forte, para garantir uma melhor distribuição de renda. E o Estado tem que estar em cima cobrando para poder fazer a redistribuição de renda. Então, classicamente, essa é a distinção entre esquerda e direita que foi trabalhada por Noberto Bobbio. Só que no Brasil, nós vivemos uma realidade de tanta desigualdade, o fosso é tão profundo que separa as classes sociais, que nenhum candidato entrou numa campanha para dizer assim: -”Mais liberdade, vamos lutar pela liberdade”. Porque fazer esse discurso significa olhar para a maioria da sociedade brasileira e dizer assim: “desconsideramos a sua condição social, a sua condição de pobreza, de miséria”. Do ponto de vista eleitoral, isso é uma tragédia. O deputado André Fernandes, entrando nessa campanha aqui em Fortaleza, não vai poder simplesmente reproduzir o discurso que ele faz lá na Câmara. Esse discurso de lutar por liberdades não vai funcionar, porque o fortalezense está preocupado se vai ter o atendimento de saúde no posto. Acho que o Girão vai fazer muito fortemente esse discurso de uma nova visão para a administração de Fortaleza, talvez visão mais empresarial, mais racional, tratar a administração pública de maneira mais zelosa, de maneira mais racional.

O Otimista – Alguns partidos aumentaram o número de Prefeituras nas últimas semanas. Quais fatores contribuíram para esse aumento de filiações?

Carla Michele – É o realinhamento das forças políticas. No Brasil, são poucos os partidos que apresentam um perfil ideológico claro. São mais de 30 agremiações partidárias, mas a gente conta nos dedos de uma mão os partidos que realmente têm uma estrutura ideológica por trás, que dê sustentação, conteúdo programático mais rígido. As filiações ocorrem por conveniências. Os candidatos vão se aproximando dos partidos políticos, vão se filiando em virtude da possibilidade de manter uma relação mais próxima com o poder para angariar recursos, vagas, empregos, alguma vantagem e, alguns em virtude do conceito eleitoral. Algumas pessoas se filiam em partidos políticos que permitam uma quantidade menor de votos para que tenham maiores chances eleitorais. A própria janela partidária é uma incoerência muito grande dentro da nossa legislação que pressupõe fidelidade partidária. É como se a legislação dissesse assim: “você tem que ser fiel, mas tem um determinado período do ano que você pode ser mais ou menos fiel”. O mandato não pertence ao indivíduo, ele pertence ao partido político. Mas a janela permite essa promiscuidade. Eles se utilizam desse período exatamente para suprir as suas conveniências eleitorais. Com o rompimento do PT com PDT, uma série de parlamentares teve que fazer essa migração para continuar participando do poder, para continuar participando do governo. Então, sobretudo os que deixaram o PDT e foram para o PSB, é porque queriam se alinhar a um partido político que tivesse proximidade com o governo, mas que não fosse do mesmo partido do governo, até porque o partido é vinculado a determinadas ideias que desagradam o brasileiro que é mais conservador, que acha que as mudanças têm que ocorrer de forma mais tranquila. Essas pessoas acabaram indo para o PSB por causa do seu presidente, o Eudoro Santana, o pai do Camilo Santana abertamente favorável à ideia de preservação dessa aliança do PSB com o PT, ele acredita que é importante para o Estado do Ceará. Para outros, foi necessária a filiação no Partido dos Trabalhadores. Evandro Leitão, por exemplo, se não estivesse no Partido dos Trabalhadores, se tivesse migrado para o PSB encontraria dificuldades de ser o candidato apoiado pelo governador do Estado, por Camilo Santana, porque o PT ia mais fortemente resistir a isso, principalmente as alas do partido que são mais radicalizadas. Não iriam admitir que o PT apoiasse, estando na presidência da República, no governo do Estado, e não ter uma candidatura própria na cidade de Fortaleza.

O Otimista – A Câmara Municipal de Fortaleza sofreu mudanças na sua composição. O PSD passou de dois para sete vereadores, ultrapassando o PSB de Cid Gomes. Como avalia isso?

Carla Michele – É oportunismo mesmo. Acompanhar o Cid agora seria virar as costas para o Sarto. Como é que eu vou seguir o direcionamento de uma pessoa que hoje nem tem a máquina na mão? Embora ele tenha uma influência muito grande no governo, ele não está [no governo]. Ele tinha ainda uma participação muito ativa no governo do Camilo Santana, mas agora não tem mais isso.

O Otimista – Qual será o papel de Cid Gomes nessas eleições?

Carla Michele – O PSB vai apoiar a candidatura do PT, do Evandro Leitão. Ele deve ter, em algum momento, alguma participação nisso, mas eu não acredito que ele vai entrar nessa campanha, como, por exemplo, o governador do estado, que vai ter que participar mais ativamente dessa campanha para garantir o resultado eleitoral positivo. O papel dele [Cid] deve ser muito mais de bastidores. Talvez tenha alguma participação maior em Sobral com a provável candidatura de Izolda [Cela].

O Otimista – Dia 8 de maio se encerra o cadastro eleitoral. Qual a importância de participar destas eleições?

Carla Michele – O voto é uma conquista para o povo brasileiro. Nós vivíamos até o século XVIII em regimes que não contemplavam a ideia de que as pessoas pudessem decidir os rumos das suas sociedades. É muito recente essa participação popular no processo de escolha de representantes. Em alguns casos, somente no século XIX. A política nasceu na Antiguidade Clássica. O modelo representativo permitiu essa expansão da participação política. É imprescindível que as pessoas escolham seus representantes com consciência daquilo que estão fazendo. A participação eleitoral, a escolha é imprescindível, mas é mais do que isso: a cidadania exige ativismo.

O Otimista – Recentemente o ministro Alexandre de Moraes anunciou que a procura de jovens entre 16 e 17 anos pelo título de eleitor aumentou em comparação a 2020. Como esse aumento vai impactar nestas eleições?

Carla Michele – Vai ter um impacto grande. É claro que a gente não pode pensar de maneira homogênea. Quem vota é o jovem de 16 e 17 anos. Existe aí uma multiplicidade, uma heterogeneidade muito grande, porque são pessoas que vêm de condições sociais distintas, condições financeiras distintas. Então tem outras coisas que definem a qualidade da informação que essas pessoas recebem. Talvez esse resultado de um alistamento eleitoral maior deva-se ao fato do próprio trabalho da Justiça Eleitoral, através de campanhas de conscientização. Isso reforça a ideia que nós precisamos formar esses indivíduos para a cidadania e que precisam ter algum nível de maturidade intelectual e ética para entender as consequências daquilo que estão fazendo; saber que estão fazendo uma escolha que vai repercutir na vida de toda a sociedade. É importantíssimo que essas questões sejam discutidas desde muito cedo. O voto é facultativo para eles, não há obrigatoriedade. Mas se há a possibilidade deles se alistarem eleitoralmente, é importante que eles estejam preparados para assumir a responsabilidade.

O Otimista – O TSE tem julgado vários casos de fraude à cota de gênero e definiu novos critérios para caracterizar essas candidaturas ‘laranjas’. Isso deve trazer mais rigor contra a prática?

Carla Michele – Eu acredito que seja fundamental, porque a legislação tem como principal objetivo educar as pessoas. A legislação não é pensada para punir. A punição é uma consequência. Quando o processo educacional não funcionou adequadamente, tem-se a punição. Mas a ideia é prevenir conflitos, é educar as pessoas, mudar mentalidades. E as cotas de gênero são um instrumento importante de conscientização dos partidos políticos de que eles precisam cada vez mais atender a essa demanda crescente por diversidade. Desde que as cotas começaram a ser implementadas, na década de 90, houve um aumento tímido, mas um aumento da participação de mulheres nos espaços de poder, nos partidos políticos, nas Casas parlamentares, no Executivo. E o aperfeiçoamento dessa legislação tem feito com que mais mulheres se sintam encorajadas para que de fato coloquem os seus nomes à disposição, porque para a mulher é muito difícil. Se a gente está dizendo que a política é uma atividade desqualificada, uma mulher que culturalmente é treinada para agir de maneira mais responsável, até porque ela é cuidadora, ela é mãe, então socialmente, culturalmente, essa mulher é treinada para ser mais responsável, para agir de maneira mais ética. Mesmo que haja toda uma legislação que determine que tenha um percentual de participação feminina nas eleições, que haja uma distribuição de recursos que contemplem essas candidaturas femininas, porque isso é aperfeiçoamento. A legislação foi criando mecanismos para que essas mulheres realmente estejam no jogo. Isso é muito importante, mas o caminho que precisa ser percorrido ainda é muito longo. Nós vivemos em uma sociedade que é extremamente machista, a mulher não acredita que uma mulher possa num espaço de poder ser mais importante, que ela vai fazer a diferença, que ela possa fazer alguma coisa. É muito importante que a legislação avance cada vez mais e já há uma discussão em torno de cotas de cadeiras. Isso seria um avanço ainda maior.

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