Opinião

AIRTON DE FARIAS: “O presente permite entender o passado”

Para o historiador, pesquisador, professor e escritor, há um embate permanente sobre os fatos, cuja versão final estará sempre em aberto. Para ele, isso mostra como é saudável conviver, aceitar e tolerar outros olhares. “É contraditório, mas é muito importante para nós”

Entrevistado é historiador, professor e escritor / Davi Farias

Erivaldo Carvalho
opiniao@ootimista.com.br

José Airton de Farias é licenciado, mestre e doutor em história, área onde é professor e autor de livros didáticos.

Também bacharel em direito, o entrevistado estuda a ditadura civil militar brasileira na perspectiva das esquerdas.

Ultimamente, incorporou às suas pesquisas a atuação da extrema-direita.

Nesta entrevista ao Grupo Otimista de Comunicação, Airton de Farias analisa aspectos da ditadura militar (1964-85) e destaca a relevância do regime para a compreensão da conjuntura atual.

O entrevistado também realça aprendizagens do período, lembra como se deu a abertura política e enfatiza a democracia como valor fundamental. Confira os melhores trechos:

O Otimista – Qual a importância da história?
Airton de Farias – A reflexão sobre história é muito importante, para compreendermos quem nós somos, por que somos assim e, sobretudo, nesse momento pelo qual passa o Brasil.

O Otimista – É importante, inclusive, para construção de diferentes memórias?
Airton – Há a memória consolidada e, às vezes, fatos que são silenciados. Há uma diferença de conceito. Eu lembro, relembro, construo e reconstruo representações do passado. A história também muda, só que é muito mais arredia a essas mudanças.

O Otimista – O senhor se refere ao método do historiador?
Airton – O historiador tem de se basear em fontes, documentos, análises, debates e críticas de seus pares. O jornalista, por exemplo, pode, é um direito por sinal, não apontar suas fontes. Um historiador, não.

O Otimista – A história com registros oficiais não acaba sendo a memória do vencedor, dos herói?
Airton – Isso é o que chamamos de história metódica ou história positivista, muito preocupada com datas e nomes, vistos de cima. Generais, políticos e governantes. Nos últimos 70 anos, a academia buscou mudar isso.

O Otimista – Qual o novo olhar?
Airton – É o olhar de baixo, dos esquecidos, renegados, silenciados. É outra visão historiográfica. Claro que, para o grande público, a história oficialesca continua chegando.

O Otimista – Por quê?
Airton – Porque, de certa forma, há um distanciamento da academia com o grande público. Algumas pesquisas e análises, realmente, são mais complicadas. Não há um esforço de trazer essas produções para o ensino médio no País.

O Otimista – Como veio a ideia de escrever o livro História do Ceará?
Airton – Eu sempre fui muito curioso. A gente estudava a história do Brasil, nos aspectos nacionais. Mas, como esses fatos se deram no Ceará? Então, eu vi a ideia de lançar esse livro didático, que no ano que vem chegará à oitava edição – talvez, a última.

O Otimista – Por certo, o reconhecimento do livro lhe ajudou no ensino de história.
Airton – Eu ministrei aulas em cursinhos de Fortaleza, nessas escolas tidas como grandes, por mais de 20 anos. Então, o livro serviu para eu me inserir nesse mercado de cursinhos, muito concorrido.

O Otimista – Como se deu a migração para a área acadêmica?
Airton – Eu precisava me aperfeiçoar. Gosto de estudar, ler e escrever. Então, fiz mestrado pesquisando os grupos de esquerda armados no Ceará. No doutorado, pesquisei presos políticos do Estado no IPPS, que foi uma prisão política também. No pós-doutorado eu acabei pesquisando, por acaso, um grupo de extrema-direita.

O Otimista – É disso que trata seu novo livro, “Explosões
conservadoras?
Airton – O livro trata, exatamente, desse ponto. Uma extrema-direita violenta, que não é um discordar do outro. A questão é impedir que o outro exista ou manifeste seu pensamento e ponto de vista. É impedir, de forma violenta, pela agressão e extermínio físico.

O Otimista – Como era a atuação desses grupos?
Airton – Eu estudei, especificamente, um grupo que atuava em Fortaleza. O MAC, Movimento Anticomunista, colocou bombas na Praça do Ferreira, DCE da UFC, bancas de jornal e igreja no Montese. Fazia parte de um contexto do final dos anos 1970, começo dos 80. Eles imaginavam que se o regime militar se abrisse, poderia haver implantação no Brasil de governo comunista.

O Otimista – Qual a aprendizagem do golpe civil militar de 64?, sessenta anos depois?
Airton – Primeiramente, que ditadura não é interessante de qualquer viés ideológico. Nós demoramos a reconhecer a democracia como um valor fundamental para a sociedade. E o Brasil, logicamente, não começou em 1964. Devemos ter muito cuidado em achar que tudo no Brasil se resume ao golpe.

O Otimista – Seja mais específico.
Airton – Antes do golpe de 64 já havia autoritarismo, racismo, xenofobia, ódio e violência política. Em 1964, vários desses aspectos foram aguçados. As contradições levaram a sociedade a entender a importância da democracia. Somos obrigados a conviver, aceitar e tolerar o outro. É contraditório, mas é muito importante para nós.

O Otimista – Como o regime militar foi do consenso ao desgaste?
Airton – Regimes buscam consenso social. E o governo militar do Brasil teve, em certo momento, um consenso muito grande. Especialmente, na classe média, grupos econômicos, parte da imprensa, parte da OAB e Igreja. Só que o consenso se desfez no final dos anos 70. O regime fez água e a sociedade passou a abraçar a democracia como um valor fundamental.

O Otimista – Por que houve pressão pela redemocratização?
Airton – Porque o regime ficou muito desgastado, político, econômico e socialmente falando. A música “Inútil”, do Ultraje a Rigor, ilustra bem o que era a visão de muita gente do País naquele momento. O Brasil era um país inútil, fracassado, da “década perdida” – um termo muito famoso. Poucos assumiram o ônus.

O Otimista – A visão sobre o golpe de 64 é um debate atual. Por quê?
Airton – Porque existe no Brasil uma forte chama de utopia autoritária. Há grupos políticos que entendem que só um regime de força consegue trazer ordem ao País e progresso à nação. Infelizmente, há grupos que questionam a democracia. Inclusive, tentando enquadrar o que aconteceu no seu viés ideológico. Os militares, por exemplo, tratam o golpe como movimento militar ou revolução.

O Otimista – Por que existe a narrativa de que militares governam melhor o Brasil do que civis?
Airton – É a crença de que os militares são mais preparados. Para os militares, civis são demagogos, populistas, corruptos e incompetentes. Já os militares, como são patriotas, não teriam outros interesses. Esse discurso é muito antigo. No governo Bolsonaro, isso foi um elemento que orientou a prática.

O Otimista – Por que a última ditadura no Brasil, quase quatro décadas após a redemocratização, ainda causa incômodo aos militares?
Airton – É porque na pós-ditadura houve um esforço de silenciamento. Na visão dos militares, não há por que puni-los. Para eles, a sociedade deveria, na verdade, exaltá-los, porque eles livraram o Brasil do comunismo, em 1964. Essa ainda é uma crença muito forte nas corporações. Nas Forças Armadas, as gerações anteriores passam esses valores aos novos cadetes.

O Otimista – Por que há essa tentativa de releitura?
Airton – Há vários embates sobre o passado, mas a história é feita no presente. Ela nunca vai ter uma versão absoluta. Aquela ideia de que a história permite compreender o presente, talvez o mais interessante é verificar que o presente permite entender o passado.

O Otimista – O historiador interfere nesses recortes?
Airton – A história não pertence aos historiadores. É muito ingênuo achar que, pelo fato de eu e outros colegas sermos historiadores, nós temos o mínimo da história. O trabalho historiográfico baseia-se na ética e produção acadêmica. Não é apenas a minha bela vontade de fazer, de escrever.

O Otimista – A atual polarização esquerda-direita e as bolhas não ajudam.
Airton – Para começar, temos de dizer que existem várias direitas, assim como várias esquerdas, com várias gradações. Não são as mesmas nem no próprio Brasil. A esquerda ou a direita no Nordeste não são iguais às do Sul. Como não é igual, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos. São muito diferentes entre si. Tanto no tempo como no espaço. Mais uma coisa marca a extrema-direita: a exaltação do militarismo.

O Otimista – Pós-verdade e fake news afetam o trabalho do historiador?
Airton – Sim. O historiador tem compromisso com sua pesquisa, instituição e ética. Pesquisas, muitas vezes, vão contra o que as pessoas não querem ouvir. É aquela famosa frase do Peter Burke: a função do historiador é lembrar o que as pessoas não querem lembrar. Nós somos os chatos da turma, que vão lembrar coisas que de repente desagradam muita gente.

O Otimista – A história é tribunal?
Airton – A história não é tribunal. As pessoas imaginam quem é bom e quem é vilão. Claro que você, quando escreve e fala, deixa transparecer seu ponto de vista político e ideológico. Mas a história não serve como tribunal. Eu não sou juiz. Eu não vou dizer quem é bom, quem é ruim.

O Otimista – Então a frase atribuída a Fidel Castro, “A história me absolverá”, na sua perspectiva, não faz sentido?
Airton – Não faz sentido. A história não é só dele. Vários repetem “a história vai nos julgar”, mas a expressão é muito famosa por causa do Fidel. Você conhece vários casos de figuras que fizeram absurdos, de repressão e morte e que terminaram a vida muito bem, com fortuna e prestígio.

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