Opinião

Dona Valneide e o “nafrágil” – Aldonso Palácio

A arte de Sérgio Gurgel (1982) é guiada pelo acúmulo de experiências afetivas das fortes presenças femininas que marcam a sua vida. Cada objeto carrega uma simbologia quase devotiva, como se ele esmiuçasse diversas formas de construir altares,

Sérgio Gurgel, “Parteira”, 2021, óleo sobre cadeira de acrílico, luminária. Foto: Thais Mesquita

pedestais, amuletos de veneração e memória. A própria pintura e a lida do atelier de Sérgio é envolvida de atos ritualísticos. Unindo sua fé sincrética às imagens de suas deusas de couro vincado, ele sugere a concepção de um novo sistema de credo. Um sistema encoberto com um véu fictivo e estético do romantismo e do barroco, onde suas anti-heroínas envelhecidas, desprovidas e sofridas tornam-se dignas de insólitos tronos e esplendores – onde a pele, o couro enrugado, é a principal forma de transferência visual, insinuando sensações que vão da sequidez mórbida à umidade voluptuosa.

Até pouco tempo estas mulheres habitavam exclusivamente seu torrão natal, Acopiara. Os destinos de Dona Valneide e Sérgio Gurgel se cruzaram nos corredores do edifício Palácio Progresso. Ela oferecia seus serviços de faxina, ele sem querer achou a musa que faltava na cidade de Fortaleza para dar continuação do seu processo anímico e artístico iniciado aos 12 anos de idade. 

Dona Valneide, de 67 anos, tem sua saga poeticamente narrada na instalação “Nafrágil”. É como ela se refere ao trágico naufrágio da jangada que matou o marido pescador e a condenou à viuvez precoce e aos amargores da vida, onde teve que trocar a colônia de pescadores do Mucuripe ao centro da cidade, em busca da sobrevivência. O passado de probações encontra-se em vários indícios visuais na instalação – a fome, a prostituição, relacionamentos abusivos – mas há também lugar para as memórias da fartura do Mucuripe da década de

Vista da instalação “Nafrágil” de Sérgio Gurgel (foto: Thais Mesquita)

60, dos saques a nado feitos no navio encalhado Mara Hope, das canções melancólicas de amores ao mar. Fragilidade e fortaleza, vida e morte, aconchego e abandono, são algumas das dualidades que a instalação e a personagem afloram. Estéticas se colidem nas superfícies lustrosas dos plásticos vinílicos, acrílicos e vidros estilhaçados encarnam a pressa e insensibilidade do capitalismo da urbe, o “desequilíbrio entre uso e consumo”, como se refere a curadora Carolina Vieira. Ao oferecê-la um trono, Sérgio Gurgel joga luz não só na história de uma mulher, mas das diversas Donas Valneides que já cruzaram em algum momento nossas vidas, e que agora não temos escolha mas vê-las com outros olhos. 

 

Mais:

Você pode conferir um tour comentado no Instagram oficial do Sobrado Dr. José Lourenço – @sobrado54

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