Economia

Cicloturismo: um mundo novo a cada pedalada

Candice Machado
economia@ootimista.com.br

Levava uma vida comum, seguia o rumo esperado. Trabalhava cerca de 12 horas por dia. Desejava adquirir bens, fazer amigos, encontrar um amor. Havia iniciado sua carreira como ilustrador em 1994, ainda sem curso superior ou profissionalizante. Vivia uma experiência importante, mas a mesmice e o estresse cresceram. “Aquela carga não fazia bem. Queria ir embora, mas não sabia de que maneira. Precisava mudar de rumo ou adoeceria”. Após ler o livro “No Guidão da Liberdade”, de Antonio Olinto, decidiu ganhar o mundo. “Essa obra me trouxe a ideia de que, sim, era possível!”. Ele foi de bicicleta, sozinho, quando o conceito de cicloturismo ainda não era forte como nos dias atuais.

Rafael Limaverde, hoje com 47 anos, iniciou sua viagem em 2002. Durante 24 meses, percorreu 16 países latino-americanos. Partiu de Fortaleza rumo ao oeste do continente, foi até Cuba e ao México, circundou a América Central e “desceu”, alternando entre os Andes e o litoral pacífico da América do Sul, até encontrar a costa do Atlântico e seguir de volta para o Ceará. Virou livro.

“Pelos caminhos de Nuestra América” está em sua terceira edição e conta a jornada que transformaria o então ilustrador sobrecarregado, no artista e escritor que hoje gerencia seu negócio e seu tempo. “Quando voltei, decidi que não iria mais bater ponto. Assim fiz e, até hoje, trabalho com liberdade e tempo para os meus projetos”, relata.

Rafael entendeu que se viaja para aprender poesia. “Sempre pensei nos momentos difíceis dessa viagem, que poderia perder coisas, perder oportunidades, perder a paciência. Só não poderia perder a poesia. Aprendi isso na prática. Às vezes, errar um caminho leva a lugares, pessoas e situações maravilhosas. Há sempre uma poesia no caminho e temos que abrir os olhos para ver”, observa.

Preparo

O desejo de vivenciar a liberdade não dispensou disciplina e algum receio. Ele investiu dois anos nos preparativos para sua viagem. O primeiro foi de trabalho duro para juntar dinheiro. O segundo trouxe definições. “Decidi que seria de bicicleta, comecei a comprar equipamentos, fazer contatos com viajantes e estudar. Fui garimpando informação até me sentir seguro”, lembra. O período de pesquisa fortaleceu suas convicções e o ajudou a lidar com os próprios temores e as incertezas de terceiros que, inevitavelmente, surgiriam. “Todo movimento fora do ‘fluxo natural das coisas’ vem seguido de resistência. É importante que o medo exista, só não pode fazer desistir. Isso vale para a vida”, pondera.

“Me leve pra casa, Lady Laura…”, Roberto Carlos entoava em uma fita K7, que Rafael levou para a estrada junto com uma pá de livros. A canção batizou a bicicleta que ele havia comprado seis meses antes da partida. Ela seria vendida, se preciso. Ele poderia seguir de mochilão. “Devemos sempre estar atentos se estamos felizes. Sair do lugar onde eu estava era o motivo maior, isso pode ser feito de várias maneiras. Escolhi a bicicleta, e foi das melhores coisas que fiz na vida”, revela.

Aprendizados

A viagem de bicicleta pede tempo, olhar, paladar e escuta, considera Rafael. “É preciso parar para pedir informação, abrigo, água… É necessário saber ouvir, responder e aceitar o que oferecem. Entrar em lugares com limpeza precária, mas comer a melhor comida do planeta Terra”. Mas a modalidade também oferece solitude. “Ganhei silêncio e milhões de pensamentos para perceber, nos lugares mais insólitos, a beleza que estava em minha volta. Foi na América latina, com seu povo feito de fé, raça e poética, onde mais aprendi a ler poesia.

Hoje, após 20 anos, Rafael ganhou filha, sobrinhos, formou família, perdeu amigos e a mãe, de quem herdou o gosto pela estrada e pela arte. Diz que o corpo e a alma mudaram, mas carrega com ele aqueles anos atravessados de bicicleta.

“Hoje, estou sempre avaliando o peso que coloco nas coisas, nos outros e em mim. Pedalar pelo lado periférico do mundo me fez afinar o olhar para o que é real. Me interessam lugares e pessoas de verdade, com suas contradições e imperfeições, mas feitas de um material original. Hoje, Lady Laura está pendurada na parede. Não como um troféu, mas para me lembrar de um mundo de coisas que aprendi e não posso esquecer. Dou alguns rolês, mas tenho outra no lugar dela”.

Fortaleza tem 428,6 Km de infraestrutura cicloviária, contando as vias compartilhadas (Foto: Rogério Lima/Prefeitura de Fortaleza)

Fortaleza incentiva uso da bicicleta entre turistas e moradores

Sobre duas rodas, o deslocamento vira experiência, ganha outro ângulo. O corriqueiro, visto de perto, parece novo. Ruas, pessoas e lugares, antes ocultos pelas janelas, se revelam ao ciclista, partícipe da paisagem. Lugares e cidades desconhecidas se apresentam sem cerimônia. Lembram uma velha conhecida que convida a pedalar bem devagar, contemplar o cenário, sentar para um café.

“Aprendi isso na prática. Às vezes, errar um trajeto leva a lugares, pessoas e situações maravilhosas. Há sempre uma poesia no caminho, basta abrir os olhos para ver”, diz o artista e escritor Rafael Limaverde, autor do livro “Pelos Caminhos de Nuestra América”, que relata os detalhes de sua viagem de dois anos por 16 países da América do Sul, realizada de bicicleta.

O modal estimula a conexão das pessoas com o território e os benefícios vão além do aprendizado individual. “Potencializa a evolução de uma economia local ao mudar a relação das pessoas que estão pedalando com as comunidades envolvidas nessas iniciativas. Isso aumenta o nível de consumo de produtos e serviços locais e incentiva o desenvolvimento de pequenos negócios”, afirma Isabela Castro, coordenadora especial de Mobilidade Urbana da Secretaria de Conservação e Serviços Públicos de Fortaleza (SCSP).

Ela ainda destaca o potencial do cicloturismo no estímulo à adoção da bicicleta como meio de transporte cotidiano. “Dar condições atrativas para pessoas pedalarem na alta estação, como parte de uma atividade de turismo, pode ajudar a mudar a percepção sobre uso diário e urbano”, acrescenta.

Potencial

Para Isabela, Fortaleza tem grande potencial para impulsionar pequenos negócios a partir de projetos de cicloturismo. “Não apenas de hotéis e pousadas, mas também de outros serviços e setores de base comunitária. Integrar projetos a uma visão local gera muitos pontos positivos para o desenvolvimento de emprego e renda na cidade”, aponta.

Rafael avalia que a atividade pede investimentos e traz possibilidades. “No caso das estradas, é sempre importante um bom acostamento. Nas cidades, boas ciclovias, arborização e ampliação da estrutura cicloviária. Seria interessante uma maior divulgação dessa prática. Rotas turísticas com bases de apoio, manuais e mapas. É um campo muito amplo para ser explorado”, observa.

De acordo com a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), as capitais do País somam 4.365,79 km de estrutura cicloviária exclusiva para ciclistas, ou seja, excluindo as estruturas compartilhadas, como ciclorrotas e calçadas compartilhadas. Fortaleza (419,2 km) é a quarta com maior extensão, atrás de São Paulo (​​689,1 km), Brasília (636,89 km) e Rio de Janeiro (487 km). De acordo com o Mapa Cicloviário atualizado, a capital cearense tem um total de 428,6 km de infraestrutura cicloviária, contando as vias compartilhadas.

Isabela Castro afirma que Fortaleza já possui iniciativas de promoção do uso da bicicleta no contexto de turismo. “A Ciclofaixa de Lazer está em operação desde 2014 e atrai mais de 5 mil pessoas por edição. Essa importante ação do Pedala Mais Fortaleza estimula o uso no lazer e turismo, mas também promove o uso diário da bike como uma alternativa menos poluente e saudável de transporte”.

O Município também tem investido na ciclomobilidade a partir do Pedala Mais, uma nova política cicloviária. “O foco é aumentar a segurança, o conforto e integrar ainda mais a bicicleta à cultura de Fortaleza, e o turismo faz parte da nossa cultura. Queremos garantir uma conexão de 100% da malha cicloviária e estimular o número de usuários da bicicleta, com maior diversidade de público. Nosso objetivo é dobrar o número de ciclistas em Fortaleza nos próximos dez anos”, estima.

 

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